Piquete-SP, Lugar de Memória: "Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil elaborado pelo Comitê Científico Internacional do Projeto da UNESCO “Rota do Escravo: Resistência, Herança e Liberdade”. Relativamente ao Núcleo Embrião de Piquete-SP, foram contemplados; "Caminho do Ouro", "Jongo" e "Irmandades", estes dois últimos, na condição de patrimônio imaterial.
domingo, 25 de dezembro de 2016
INDÍGENAS DO LITORAL PAULISTA (Transcrição)
Guaianás - também nominados como Guaianazes ou Guaianãs. Grupo de índios que transitou ao longo da Serra do Mar, em um território desde Cananéia à Serra de Paranapiacaba até a foz do Rio Paraíba, no Rio de Janeiro. Eram nômades, viviam da caça, pesca, coleta de frutos silvestres. Ou seja, quando os recursos de uma região diminuíam, eles caminhavam para outro lugar acompanhando a produção sazonal e espontânea da Natureza. Diferente de outras tribos, os Guaianás não moravam em Ocas, mas sim tinham o hábito de se abrigar em covas no chão (senão em ocos naturais), forradas de peles de animais e ramas de plantas. Tudo quanto possuíam transportavam às costas com pequenas trouxas, as brasas incandescentes num fogareiro, a improvisar abrigos com a vegetação durante as chuvas.
Antonio Knivet, viajante (1595), descreve nativos aos quais chama Waynasses ou Vaanasses vivendo na região de Paraty. Observa serem de baixa estatura, muito barrigudos, pés chatos, medrosos e de regular compleição. As mulheres sendo corpulentas e disformes, porém de belo semblante. Estas pintavam o corpo e faces com tinta unícú. Os cabelos nos homens quanto nas mulheres caíam-lhes compridos pelos ombros, mas no alto da cabeça raspavam-no feito uma coroa.
Comenta Gabriel Soares de Sousa (1587), "não são os Goianazes maliciosos, nem refalsados, antes simples e bem acondicionados, e facílimos de crer em qualquer cousa. Não costuma este gentio fazer guerra a seus contrários fora de seus limites, nem os vão buscar nas suas vivendas, porque não sabem pelejar entre o matto, se não no canipo aonde vivem." - Não matava ou mutilava o corpo. Nem se vangloriava tanto como outros índios canibais de comer carne humana.
ÍNDIOS GUAIANÃS ACOMPANHAM UMA EXPEDIÇÃO - GRAVURA DEBRET.
Fonte: _ Itapema, suas histórias http://almanarkitapema.blogspot.com.br/2016/04/indigenas-do-litoral-paulista.html
Apresentando o Estado Político da Capitania de São Paulo em 1766, foi elaborada esta carta, com particular atenção aos limites com Minas Gerais. Na aproximação, os detalhes relacionados à Baixada Santista. Há uma outra versão, copiada em 1869 e colorida
Alto da Serra - Serra de Jaguamimbaba (Mantiqueira), Espaço Colonial de Piquete-SP
Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/mapa106g.htm
Imagens: reproduções da cópia conservada no Arquivo do Estado de São Paulo, São Paulo/SP. Referência de localização do documento: setor iconográfico/mapa 08.02.04. |
7.7 FIM DAS BANDEIRAS DE APRESAMENTO. CREPÚSCULO DA LÍNGUA GERAL (Transcrição)
O século XVII é particularmente importante na dinâmica da escravidão indígena
e, por conseguinte, da língua. Em seus meados é que ocorre o refluxo do apresamento
bandeirista, devido sobretudo à resistência jesuítica dos inacianos no Paraguai e o
distanciamento progressivo das fontes de abastecimento. Esse refluxo, claro, diz respeito ao
apresamento sistemático e reiterado, embora muitas dessas expedições vão prosseguir até o
final do século, destacando-se delas a de Raposo Tavares, à qual Jaime Cortesão dedica
toda uma obra (1958) para provar que sua finalidade, embora tenha levado a efeito o
apresamento de índio, tenha sido de caráter geopolítico e, portanto, expansionista. Em seu
estudo recentemente publicado, aqui tantas vezes citado, John Manuel Monteiro (2005)
discorda desse caráter. Entretanto, sua tese não fica provada do texto produzido, até porque
ele mesmo se encarrega de demonstrar que os apresamentos rarearam depois de meados dos
Seiscentos porque os habitats dos índios ficaram distantes demais e, por isso,
antieconômicos. Se se considerar que a bandeira expansionista de Raposo Tavares partiu
“num dos últimos meses do ano de 1947” (CORTESÃO, 1958:354), quando, portanto, já
estavam em franco declínio essas expedições pela convicção generalizada de sua
contraproducência, tem-se como improvável o fito de mera preação. Eis o texto de
Monteiro (2005:81):
Jaime Cortesão – entre outros – caracterizou esta expedição como ‘a
maior bandeira do maior bandeirante’, insistindo nos fundamentos
geopolíticos que teriam motivado a exploração portuguesa do interior do
continente. Na verdade, Raposo Tavares e seus companheiros, na maioria
residentes em Santana de Parnaíba, procuravam, desta vez, investigando
a possibilidade de assaltar as missões do Itatim, ao longo do rio Paraguai,
reproduzir o êxito obtido nas invasões do Guairá.
Curioso notar que a obra poética de cunho epopéico de maior projeção universal,
Os Lusíadas, não era desconhecida dos rudes paulistas dos Seiscentos, como o demonstra
Alcântara Machado (1980:104-5) no minucioso levantamento que fez dos inventários
processados de 1578 a 1700 no primeiro cartório de órfãos da capital:
Há todavia um belo testemunho do quanto é conhecido o poema da raça.
Aqui está o inventário de Pero de Araújo, processado em dezembro de
1616, no sertão de Paraupava, a mando do Capitão Antônio Pedroso de
Alvarenga. A carência do material de escrita leva o escrivão do arraial
Francisco Rodrigues da Guerra a aproveitar o primeiro retalho do papel
que se lhe depara. Por uma dessas coincidências esplêndidas em que o
destino se compraz, a última folha dos autos tem numa das faces os
termos finais do inventário e na outra a cópia manuscrita de algumas
estrofes camoneanas. São aquelas, precisamente, em que, depois de terem
passado por calmas, tormentas e opressões, e transposto o limite aonde
chega o Sol, se aprestam os portugueses a investir o cabo Tormentório.
Villalta (2002:375), empolgado com essa descoberta, chega a arriscar a seguinte
indagação: “Teria o épico camoniano embalado a expansão bandeirante?”. Exageros à
parte, vale notar que, dos poucos espólios em que encontrou livros, Alcântara Machado
(1980:238) registra que Manuel Preto, o violento bandeirante, “é o único a levar consigo,
para distrair-se, um naipe e dois livros velhos”.
A corrida às jazidas auríferas descobertas em Minas Gerais (por volta da última
década de 1690), as de maior expressão, seguidas pelas de Mato Grosso e Goiás, na
segunda década do século XVIII, dará nova configuração populacional (ou depopulacional)
a São Paulo. Esse novo ciclo econômico responderá pelo deslocamento em massa dos
paulistas, e seus plantéis de índios, rumo à nova “Terra da Promissão”. A capitania sofreu
um sério despovoamento. John Manuel Monteiro (2005:210) descreve o cenário dessas
migrações coletivas:
A corrida para as minas
aprofundou a crise da escravidão indígena em diversos sentidos. Muitos
paulistas, sobretudo aqueles que tinham poucos escravos, migraram para
as Gerais, redundando num êxodo considerável de mão-de-obra local, o
que se tornou assunto tanto nas reuniões das câmaras municipais quanto
na correspondência de funcionários da Coroa. De fato, o que se percebe na documentação local, sobretudo nos inventários de bens, é um declínio
vertiginoso na concentração de mão-de-obra indígena na região.
Nazzari (2001:96) também se deteve na pesquisa documental sobre o assunto:
As expedições do século XVIII
em busca do ouro afetaram a economia de São Paulo de maneira muito
diferente do que as bandeiras do século anterior. As expedições do século
XVII haviam proporcionado uma infusão de mão-de-obra a essa
economia, o que levou ao aumento de produção e a um desenvolvimento
gradual, enquanto as expedições em busca do ouro ocasionaram um
êxodo de pessoas e de bens. (...) O êxodo de muitos paulistas, inicialmente
com grande número de índios e, depois, com muitos escravos africanos,
resultou em escassez de mão-de-obra em São Paulo.
Esse despovoamento em favor das minas trará novo perfil a São Paulo quando
muitos paulistas voltarem enriquecidos: o aumento do padrão de vida. Bruno (1966:83):
Deve-se assinalar, de outra parte, que a despeito de não ter acusado, esse
povoamento, em termo de áreas territoriais ocupadas, uma escala de
grandes proporções, foi bastante sensível o crescimento de São Paulo
nessa fase de sua formação [a partir do primeiro terço do século dezoito].
E um dos fatores de maior importância nesse crescimento excepcional foi
o retorno dos paulistas que haviam até então emigrado para as zonas de
ouro, e que voltavam para sua terra com as famílias, os agregados e os
escravos, para se dedicarem a atividades de comércio (pois São Paulo se
constituíra, no dizer de um pesquisador, na retaguarda econômica das
minas) ou mesmo de lavoura ou de pastoreio. Não foram poucos os
antigos mineradores que largaram os seus almocafres e os seus carumbés,
nas jazidas esgotadas.
O exame dos inventários da época revela um enorme salto desde as peças mais
triviais aos mobiliários que guarneciam as casas. É o que demonstra Alcântara Machado
(1980:94), descortinando a cornucópia de fartura e vaidade em que tinham se transformado
as até então austeras e parcimoniosas famílias paulistas: senhoras de gargantilhas,
afogadores, cruzes, crucifixos e esgaravatadores de ouro e pedras preciosas, vestidos de
seda, lã, camelão, serafina, purputuana, partudo, milanesa, e homens de casacas forradas de
tafetá, gibões de veludo, capinhas de pano roxo, alamodas de chamalote vermelho, chapéus
pintados a óleo, espadas de vestir, bastões com engastes de prata, desfilam por uma
comunidade ciosa de seu progresso, enfatuada de sua riqueza que alcança até os fâmulos a
princípio:
O descobrimento das minas traz
para todos a fartura, e o luxo deixa de ser um privilégio de escol,
infiltrando-se nas classes inferiores e sobretudo entre as cativas de
estimação. Para impedir escândalo tamanho a ordem régia de 20 de
fevereiro de 1696 proíbe que as escravas ‘de todo esse Estado do Brasil,
em nenhuma das Capitanias dele, possam usar de vestido algum de seda,
nem se sirvam de cambraias ou de holandas, com rendas ou sem elas,
para nenhum uso, nem também de guarnições de ouro ou prata nos
vestidos’.
Quanto ao mobiliário, Bruno (1966:78-9) mostra também a evolução:
Excelentes móveis que seriam (de
acordos com dados que aparecem nos inventários do tempo) bufetes de
jacarandá marchetados de marfim, recobertos de panos de palha.
Escritórios com gavetas e fechaduras. Arquibancos, cadeiras e tamboretes
tauxiados de latão. Espelhos dourados ou de tartaruga, nas paredes. (....)
O mesmo enriquecimento se refletiu nos utensílios de que puderam dispor
em suas casas os moradores de maiores posses. Embora fosse ainda os
mais comuns, na generalidade das casas, os velhos e rústicos vasilhames
de barro da terra, as gamelas de pau e as combucas – nas casas mais ricas
começaram a poder se ostentar, em escala maior, objetos importados da
Europa, notadamente baixelas de prata.
Nessa nova São Paulo, ensoberbecida pelo fausto e pela chegada de novos
portugueses após a Restauração, não havia espaço para uma língua geral a refletir sua
cultura: a língua portuguesa crioulizada começa o caminho inverso em direção ao
superstrato. (Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:154), depois de passear pelas concepções
teoréticas que tentam explicar a diferença entre o português americano e o europeu, termina
por admitir ter havido uma crioulização “leve” no passado brasileiro.)
Um superstrato que demanda explicação. Não se trata, evidentemente, da língua
portuguesa pré-setecentista do conservadorismo de uma vertente lingüística, capitaneada
por Serafim da Silva Neto, cuja metodologia de investigação se funda em princípios da
dialetologia românica tradicional, em que aquele filólogo era reconhecidamente uma
grande autoridade. Aliás, pode-se usar aqui a nomenclatura empregada pela citada Autora
baiana, sem que isso altere a substância do fenômeno: trata-se de um português geral
brasileiro em formação, “que teria como falantes principais os indígenas remanescentes que
se integraram à sociedade nacional” (2004:100). Isto é, local, in casu. O português a que se
dirigem os indígenas é aquele fruto da transmissão lingüística em situação de exclusiva
oralidade e de aquisição imperfeita, o que pressupõe simplificação das formas em cotejo
com o europeu. O português culto não é, portanto, o falado pelos paulistas, como repetidas
vezes tem sido dito aqui, mesmo porque, como novamente adverte Rosa Virgínia Mattos e
Silva (2004:71), ele “só começará a definir-se da segunda metade do século XVIII pra cá,
uma vez que essa variante culta passa necessariamente por questões relativas à
escolarização, ao uso escrito e sua normativização”.
A escolarização é, portanto, o divisor de águas quanto à usualidade do português
culto no Brasil, ainda que se torne uma variante diastrática reduzida a pequenos círculos de letrados. Mas, em São Paulo, a implantação de um planejamento educacional ficou
seriamente comprometida, talvez mais do que em outras Capitanias, com as medidas
pombalinas de expulsão dos jesuítas e decretação da obrigatoriedade do ensino da língua
portuguesa. Aí a situação ficou ao largo de qualquer preocupação governamental, ou seja,
como adverte Banha (1978:27), a Capitania de São Paulo se tornou “a grande ausente neste
plano de implantar o sistema educativo que faria esquecer às populações o método
tradicional de dois séculos, fomentado pela Companhia de Jesus”. Villalta (2002:357),
apoiando-se em Maria Beatriz Nizza da Silva, também descreve um quadro desolador:
As reformas desenvolvidas a partir de Pombal agravaram a situação da
educação escolar ainda mais: na medida em que havia poucas aulas
régias e em que as disciplinas, via de regra, não eram oferecidas em todas
as vilas e cidades, os interessados em instruir-se tinham que se deslocar
por vários locais. Em 1818, quando as reformas já estavam sedimentadas,
apenas 2,5% da população masculina livre, em idade escolar, era atingida
pelas aulas régias em São Paulo, situação que devia ser similar à do
Brasil em geral.
Num artigo de sua especialidade, Maria Luiza Marcilio (2004:261), conhecida por
ter sido uma das pioneiras, no terreno da historiografia brasileira, na utilização do método
quantitativo da demografia, brandindo dados estatísticos, é ainda mais incisiva:
A população da Cidade de São Paulo foi particularmente prejudicada
com a expulsão dos jesuítas em 1759. Seu Colégio, que ocupava o centro
da vida cultural do pequeno burgo, desmantelado, desorganizou o ensino
por várias décadas. Quando o governador, Morgado de Mateus, chegou
na Cidade, em 1765, enfrentou sérias dificuldades para encontrar um
cidadão alfabetizado para cumprir funções administrativas em sua
secretaria de Governo: “Não achei quem tivesse letras, que ao menos por
remédio, pudesse suprir esta falha”, lamentava o governador. A
população da Cidade era quase analfabeta na vida do século XIX. Apenas entre 10% e 20% dos chefes de domicílio podiam assinar seu nome, nos
primeiros anos dos oitocentos.
Um provável reflexo disso se faria sentir por ocasião da criação da Faculdade de
Direito de São Paulo, que inaugura a existência sistemática da literatura em São Paulo,
segundo Antônio Cândido (2002:140 e 147): sua locação sofreu restrição por ocasião dos
debates legislativos, que aconteceram tanto na Assembléia Constituinte em 1823 quanto na
Assembléia Legislativa a partir de 1826, tendo sido argüido pelo Deputado Teixeira de
Gouveia, defendendo a instalação da Faculdade em Minas Gerais, que “é mais apurado o
dialeto que se fala em Minas do que em São Paulo”, informa Alberto Venancio Filho
(1982:18)23. Batendo-se pela universidade única no Rio de Janeiro saiu-se Silva Lisboa,
entre outros argumentos, com “a pureza e pronúncia da língua portuguesa” na Corte,
informam ainda os mesmos Autores. Segundo Lisboa, quanto a São Paulo, “a mocidade do
Brasil, fazendo aí os seus estudos, contrairia pronúncia mui desagradável”, relata José
Honório Rodrigues (1985:47). Houaiss (1992:149) conclui: “O incidente da instalação das
duas faculdades de direito – em Recife e em São Paulo – mostra que havia vigilância de
cúpula quanto ao particular da pronúncia e correção da fala”
Por último, vale lembrar que a população livre de São Paulo, em 1.767, era de 14.760 e a população escrava, de 6.113,
informa Nazzari (2001:34), citando dados demográficos colhidos em Maria Luiz Marcílio. A historiadora norte-americana também
informa (2001:99) a chegada de novos imigrantes portugueses no século XVIII. É ela ainda, nesta última página, que traz um dado
estatístico relevante em relação à segunda metade do século XVIII:
Em 1765, os escravos constituíam menos da terça parte da população da
cidade. Não fora essa a proporção no século anterior. Durante todo o
século XVII, os índios a serviço da elite paulista representavam quatro
quintos dos homens armados de São Paulo. Supondo que a proporção na
população total fosse a mesma que entre os homense armados, e supondo
que homens brancos significasse homens livres e índios significasse
homens não-livres, vemos que a proporção entre livres e não-livres
passara de um livre para quatro não-livres, no século XVII, para duas
pessoas livres por escravo em meados do século XVIII.
Esses dados apontam para a inversão no contingente demográfico da Cidade de
São Paulo no século XVIII em comparação com os séculos anteriores. Além, portanto, do
afluxo de novos imigrantes portugueses, o número de libertos aumentou consideravelmente.
O Alvará de 08 de maio de 1758 tornou os índios absolutamente livres. Isso já não
significava muita coisa para os índios ex-escravos, já imersos na cultura branca, onde,
embora marginalizados na quase totalidade dos casos, aprenderam a assimilar os valores
dela, inclusive quanto à língua. Os novos imigrantes portugueses constituíam a maioria dos
comerciantes, a essa época. Era a classe que havia se tornado os “habitantes mais ricos” de
São Paulo (NAZZARI, 2001:102) e, por não empregarem gente da terra, como informa
uma carta do Marquês de Lavradio citada pela Autora, atraía a vinda de novos portugueses.
Fonte: JOÃO BATISTA DE CASTRO JÚNIOR "A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos. "https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/16201/1/Jo%C3%A3o%20Batista%20de%20Castro%20J%C3%BAnior.pdf
7.5 A LÍNGUA FALADA PELOS BANDEIRANTES (Transcrição)
7.5 A LÍNGUA FALADA PELOS BANDEIRANTES
A orientação ex autorictate que se instalou sobre a língua falada pelos
bandeirantes demonstra o difícil equacionamento da questão da língua efetivamente falada
pelos paulistas. Historiadores e lingüistas como Teodoro Sampaio (1987:71), Jaime
Cortesão (1958:360), José Honório Rodrigues (1985:22), Sílvio Elia (1979:153), Sérgio
Buarque de Holanda (2002:122-33), Gladstone Chaves de Melo (1946:33), Aryon
Rodrigues (1986, 102; 1996), Paul Teyssier (2001:94) e Marcos Bagno (2005:90-1)
afirmam que os bandeirantes falavam a língua tupi; Joaquim Ribeiro (1946:117-19) é uma
das poucas vozes em contrário, argumentando que “a linguagem popular era a portuguesa”
e que os desbravadores “falavam com igual facilidade o português e o tupi”, porém o seu
fio argumentativo, fundado na persistência de vocábulos quinhentistas no dialeto caipira,
não é concludente nem convincente, embora Gladstone (1946:33), em nota, considere como
“sérios e ponderosos” esses mesmos argumentos utilizados por Ribeiro na obra Origem da
língua portuguesa.
Essas vertentes doutrinárias dão por uma congenial imiscibilidade das línguas,
ainda que coexistam num mesmo território, algo como água e óleo que não se misturam
nunca, conforme já dito na introdução a este estudo. Condicionantes de ordem social, já
expostas, demonstram, entretanto, o contrário da tese majoritária, apontando para a direção
de que eles, descendentes dos primeiros colonos que primavam pelo uso do português,
falavam já um português crioulizado, embora diafasicamente escrevessem alguns em
escorreito português, ou seja, relativamente simplificado em sua estrutura gramatical, que
certamente pode ser chamado de antecedente histórico do dialeto caipira, em que há
marcada erosão da morfologia flexional, como mostra Amadeu Amaral em sua famosa obra
O dialeto caipira (1920), num processo precedido pela simplificação das formas
gramaticais a exemplo do que ocorreu na passagem da língua tupinambá para o status de
língua geral falada na boca de aloglotas até a ascensão do português motivada pela
institucionalização organizativa, como nota Aryon Rodrigues (1986:105): “As maiores
alterações sofridas pelo Tupinambá no processo de tornar-se Língua Geral resultam de uma
progressiva simplificação das formas gramaticais, acompanhada de reorganização da
construção das frases”.
A deficiência e fragilidade de ambas as posições explicam-se pela ausência de
estudos de línguas em contato entre nós, o que é relativamente recente. Mas só essa
perspectiva é capaz de lançar luzes sobre todo o período que vai da organização política de
São Paulo até o desaparecimento por completo da língua geral. Como se viu, o índio foi
pouco a pouco se convencendo da superioridade bélica do branco, procurando acomodar-se
à sua cultura e civilização, marchando rumo à sua própria maior valorização no tornar-se
‘crioulo’ e ‘ladino’. Outros afluíram para uma economia que, num dado momento, saturouse
da mão-de-obra oferecida, instalando-se nas cercanias da cidade em contato com brancos
também desaquinhoados pelo sistema de concentração econômica já muito visível.
Um outro fato histórico quadra como argumento de difícil superação da tese do
português como língua falada: da Câmara, cujas atas continuavam a ser escritas em
português, continuavam a brotar proibições e restrições quanto ao apresamento de certos
índios. A quem se dirigiam tais ordenações? A apresadores que não falavam a língua das
deliberações? Não consta que elas precisassem da mediação de intérpete para serem
entendidas.
Do ponto de vista lingüístico, portanto, a influência superstratal foi inequívoca,
dirigindo-se o índio rumo à branquização já ideologicamente defendida. Ocorreram,
portanto, dois fenômenos paralelos no panorama lingüístico da história de São Paulo
colonial: os brancos ex-indianizados que vieram da Vila de Santo André da Borda do
Campo, reunidos por Tomé de Sousa, transferiram-se para São Paulo com uma forte carga
lexical do tupi decorrente daquele contato. A utilidade desse inventário lexical era evidente
por si mesma: a sociedade escravista lubrificava suas engrenagens econômicas no contato
ordinário entre índios, traficantes e senhores.
Mas, em concomitância, a língua portuguesa institucionalizada politicamente já
começava a se impor como língua do conquistador, a que se foram alçando os índios de
diversas nações que acorriam, à força, em sua quase totalidade, ao mundo opressivo dos
brancos. Nessa fase, de longa duração, deu-se a crioulização do português que culminará no
processo inverso de descrioulização já adiantado na segunda metade do século XVIII. É
prefigurável que esse crioulo, marcado por numerosas unidades léxicas tupis absolutamente
necessárias, sobretudo quanto ao meio ecológico de espécies vegetais e animais
desconhecidas dos europeus, também fosse utilizado pela maioria da população iletrada Claro que no seu percurso existencial, esse crioulo sofreu gradações que iam de
maior a menor distanciamento do português, ou seja, num arco lingüístico-histórico que vai
do basileto ao acroleto, conceitos que são explicados por Hildo Honório do Couto
(1996:54):
A variedade lingüística mais distante da língua de superstrato, ou
seja, a variedade mais ‘pura’, tradicional, de crioulo é chamada
basileto. A variedade da língua dominante falada na região em
questão é o acroleto. Entre as duas, imbricando-se com elas e entre
si num continuum sem limites definíveis, há vários mesoletos.
É essa fenomenologia crioulizante que explica o famoso episódio do encontro
entre o bandeirante Domingos Jorge Velho e o bispo de Pernambuco em Palmares, em
1697, narrado por Ernesto Ennes em “As guerras dos Palmares”. Autores como Sérgio
Buarque de Holanda (2002:126), e mesmo Serafim da Silva Neto (1963:56), vêem nesse
episódio, apesar da desconfiança que esse relato lhes gera por ter sido feito por um clérigo
já ideologicamente preconcebido contra um inquisidor dos índios, um indício de certa
credibilidade para a afirmação do uso generalizado da língua geral em São Paulo, em
detrimento do português, no fim do século XVII.
Marcos Bagno (2005:91) menciona o episódio e o acolhe sem ressalvas,
abalançando-se, a afirmar, que a língua falada pelos bandeirantes era a “língua geral, língua
brasílica ou nheengatu (sic)”, o que é um equívoco ainda maior, já que a variante
amazônica surge em outro contexto histórico.
John Manuel Monteiro (2005:164) refere-se também a esse incidente coligido por
Ennes, e chega a dizer que se tratava de “um português colonial corrompido pela presença
de barbarismos africanos e indígenas”. Embora Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:80 e
95), no que é secundado por Lucchesi (2006), se refira a essa passagem de Monteiro
afirmando que ela repousa “em documentação arquivística ampla”, não se pode deixar de
assinalar que essa análise do respeitável historiador não tem remissão a nenhum suporte
documental, diferentemente de tantas outras que recheiam a obra. Além disso, a própria
menção a “barbarismos africanos” carece de razoabilidade, sabido que a vida no planalto
piratiningano, até então, era pouco afetada pela escravidão negra. Basta considerar, com
Alcântara Machado (1980:183) em sua minuciosa investigação de inventários paulistas, que
somente “em 1607 que aparece pela primeira vez um negro de Guiné. Estimam-no em
quarenta mil réis, soma exorbitante para a época”. Os tapanhunos, como eram chamados os
negros na língua geral, em oposição aos tapuitingas, gente branca, eram artigo caríssimo na
economia paulista. O próprio John Manuel Monteiro (2005:133) reconhece que os
paulistas, “praticamente sem capital e sem maior acesso a créditos, reconheciam a
impossibilidade de importar escravos africanos em número considerável”. Páginas antes,
ele também assinala que somente após 1640 é que alguns produtores de trigo “já tinham
iniciado a transição para a escravidão negra” (p.119). Ainda assim, a disparidade era grande
mesmo entre esses senhores de escravos, como se vê do plantel da propriedade de
Domingos da Rocha Couto que “em 1661, 24 negros escravos negros trabalhavam ao lado
dos 92 índios da fazenda” (p.119).
A historiadora norte-americana Muriel Nazzari (2001:97), que também fez
judicioso levantamento arquivístico por amostragem, informa o escassíssimo número de
escravos africanos no século XVII em São Paulo. Alfredo Ellis Jr, em A economia paulista, apud Nazzari (2001:314) mostra que “a proporção de africanos para índios em São Paulo
era de um africano para cada 34 índios, no século XVII, e de oito africanos para cada sete
índios, no século XVIII”.
Por outro lado, fora de São Paulo, nas múltiplas expedições de combate a que sua
reputação guerreira era convidada, seu convívio foi, na verdade, com índios, especialmente
no interior do Piauí e Paraíba, na região do Rio Piranhas. Combateu, no século XVII, ao
lado de outros bandeirantes paulistas, os índios tapuias Jaicó, Paiacu, Icó, Sucurus e Janduí,
verdadeiramente ou não acusados de aliança com os holandeses na afamada Guerra dos
Bárbaros. Detinha um plantel de cerca de 1.300 índios e oitenta brancos às vésperas de dar
combate ao Quilombo dos Palmares. “Em Piancó, em 1676, fundou um arraial, destruído
logo pelos cariris, mas que mais tarde reconstruiu, exterminando esses índios”, informa
Francisco Carvalho Franco (1989:429), autor cuja obra John Manuel Monteiro (2005:235)
reputa como “o melhor compêndio das expedições”. Não se vê, portanto, de onde se pode
tirar dado histórico de influência de línguas africanas na linguagem desse bandeirante
paulista que morreu entre 1703 e 1704.
Em suma: se desde os primórdios da colonização já se registra a presença de
negros escravos no Brasil, do que cuida expressamente Gândavo (1997:16), não se pode
falar, entretanto, de nenhuma influência lingüística deles no português na São Paulo dos
Seiscentos, pela exigüidade de sua presença demográfica. Até pelas datas da introdução das
primeiras peças em Piratininga se vê que é impertinente falar na presença de barbarismos
africanos na linguagem dos sertanistas, que, embora tivessem sido chamados a outras
regiões por suas habilidades guerreiras, sempre se faziam servir de contingente indígena em
suas expedições, como o admite o próprio John Manuel Monteiro em outra obra (2004:46),
retornando sempre a seu habitat ou quartel-general, que era São Paulo. Por outro lado, o
exame desse texto mais recente (2004:51) mostra quão confuso é esse enfoque de Monteiro,
que parece acreditar numa concomitância entre um português “salpicado de palavras e
expressões indígenas” ao lado de uma língua brasílica com “adaptações e corrupções pela
presença de outros idiomas no Planalto”, sem acenar para qualquer interação ou
interinfluência.
A análise do emblemático acontecimento, entre o bispo e o bandeirante, sob a
perspectiva crioulística tem explicação satisfatória, acrescendo-se que se o bandeirante era
capaz de falar o português, por haver escritos de seu próprio punho, não deve ter se
esforçado, como usualmente se faz na diafasia da língua escrita, em elevar-se à pureza da
língua aos ouvidos atilados do jesuíta cioso de seu bom português. Dissimulação suficiente
pra isso não faltava ao sertanista, do que se tem um bom exemplo no teor da carta
endereçada à Coroa, em 1694, que Boxer (1977:94) reproduz citando trecho da obra de
Ennes:
Primeiramente nossas tropas com q-êmos à conquista do gentio brabo
desse vestissimo sertão, não he de gente matriculada nos livros de
V.Magde. nem obrigado por soldo, nem pão de munição; são huas
agregaçoens q-fazemos algús de nos, entrando cada hu com os servos de
armas q-tem e juntos ao sertão desta cantinente não a cativar como
alguns hypocondriacos pretendem fazer cre a V. Mag., de senão adqueriu
o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o deduzir ao
conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade à associação
Racional trato pa pr esse meio chegrem aquella lus de Deos e vao
trabalha quem os quer fazer anjos, antes de fazer homens e desses asse adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com elles
guerreamos aobstinados e renitentes, a se reduzirem: e ao dezpoiz nos
servirmos delles para as nossas lavouras; nenhuma injustiça lhes
fazemos, pois tanto he p às sustentarmos a elles e seus filhos como a nós
e aos nossos: isso bem longe de os cativar, antes se lhes faz hu
irremunerável serviço em os ensinar a saberem labrar, prantar, colher, e
trabalhar p seu sustento, couza q-antes q-os brancos lho ensinem, eles
não sabem fazer.
É sintomático que esse sertanista como disposição de última vontade, num lampejo de seus desatinos já nas vascas da agonia, quando certamente devem ter lhe assomado os demônios do remordimento de consciência, tenha ordenado rezar em seu favor 450 missas..., informa Alcântara Machado (1980:219). Há um outro evento histórico utilizado como argumento dessa usualidade da língua tupi. Trata-se do já citado incidente no âmbito do inventário do inventário de Brás Esteves Leme, dado a conhecer por Sérgio Buarque de Holanda (2002:125-6) em que o juiz de órfãos precisou se valer de um intérprete para tomar as declarações da filha do defunto. Na verdade, esse fato tem que ser tomado sob outra perspectiva: os depoimentos judiciais, por longa tradição que ainda persiste na modernidade, devem ser colhidos escoimados de qualquer ambigüidade ou conteúdo anfibológico. Em se tratando de alguém cuja língua era um crioulo, provavelmente basiletal, a existência de numerosos elementos lexicais do tupi era evidente. Bastam, entretanto, a refutar essa argumentação os documentos trazidos pelo próprio John Manuel Monteiro, e já referidos, que apontam para a facilidade do índio ladino em expressar-se em português por ocasião de tomada de seu depoimento em juízo. Se eram aptos a tanto, tais índios ladinos vivendo na sociedade paulista, é porque aprenderam, em situação de oralidade – claro – a língua portuguesa com o branco falante dela, embora por um processo de aquisição imperfeita. Natural, portanto, que a ouvidos pouco treinados, naquela híbrida realidade lingüística de São Paulo, a comunicação causasse estranheza, tal como aconteceu com Hercules Florence citado por Sérgio Buarque de Holanda em apoio de sua tese, o que, entretanto, se levada às suas últimas conseqüências, significaria que a transição da língua geral para o português se teria dado por saltos, o que contraria uma evidência das ciências sociais e lingüísticas de que língua alguma desaparece como que por encanto da boca de seus falantes. Mas Sérgio Buarque de Holanda (2002:125) parece ele mesmo advertir do risco de generalizar esses registros históricos para toda a sociedade paulista: “Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma”. Um outro argumento, o da toponímia tupi fixada pelos bandeirantes para além dos domínios paulistas, também não prova a usualidade comunicativa da língua tupi, mas apenas, o que não se nega aqui, a influência lexical da língua nativa no processo de crioulização do português. Um achado historiográfico de John Manuel Monteiro (2005:183), o inventário de Salvador Moreira, de 1697, demonstra ter existido, entre esse indivíduo e um certo Braz Moreira Cabral, um desentendimento pelo descumprimento que este dera ao empréstimo de dois índios “para servir de intérpretes numa expedição de apresamento do capitão Braz Moreira Cabral” (É curioso, entretanto, o que pode ser explicado pela ausência de acuidade lingüística para ter sua atenção chamada para um problema que refoge à linha de pesquisa do Autor, que mesmo diante da evidência dessa informação, Monteiro parece não ter atentado nela ao formar a opinião de que os sertanistas eram “conhecedores da língua geral” (2005:87) Esse documento confirma a hipótese do texto: a crioulização, no caso já acroletal a caminho da descrioulização, produzira uma língua sem aptidão para a intercomunicação entre a sociedade portuguesa e aportuguesada com falantes nativos e exclusivos da língua de base tupi: os índios a serem aprisionados.
É sintomático que esse sertanista como disposição de última vontade, num lampejo de seus desatinos já nas vascas da agonia, quando certamente devem ter lhe assomado os demônios do remordimento de consciência, tenha ordenado rezar em seu favor 450 missas..., informa Alcântara Machado (1980:219). Há um outro evento histórico utilizado como argumento dessa usualidade da língua tupi. Trata-se do já citado incidente no âmbito do inventário do inventário de Brás Esteves Leme, dado a conhecer por Sérgio Buarque de Holanda (2002:125-6) em que o juiz de órfãos precisou se valer de um intérprete para tomar as declarações da filha do defunto. Na verdade, esse fato tem que ser tomado sob outra perspectiva: os depoimentos judiciais, por longa tradição que ainda persiste na modernidade, devem ser colhidos escoimados de qualquer ambigüidade ou conteúdo anfibológico. Em se tratando de alguém cuja língua era um crioulo, provavelmente basiletal, a existência de numerosos elementos lexicais do tupi era evidente. Bastam, entretanto, a refutar essa argumentação os documentos trazidos pelo próprio John Manuel Monteiro, e já referidos, que apontam para a facilidade do índio ladino em expressar-se em português por ocasião de tomada de seu depoimento em juízo. Se eram aptos a tanto, tais índios ladinos vivendo na sociedade paulista, é porque aprenderam, em situação de oralidade – claro – a língua portuguesa com o branco falante dela, embora por um processo de aquisição imperfeita. Natural, portanto, que a ouvidos pouco treinados, naquela híbrida realidade lingüística de São Paulo, a comunicação causasse estranheza, tal como aconteceu com Hercules Florence citado por Sérgio Buarque de Holanda em apoio de sua tese, o que, entretanto, se levada às suas últimas conseqüências, significaria que a transição da língua geral para o português se teria dado por saltos, o que contraria uma evidência das ciências sociais e lingüísticas de que língua alguma desaparece como que por encanto da boca de seus falantes. Mas Sérgio Buarque de Holanda (2002:125) parece ele mesmo advertir do risco de generalizar esses registros históricos para toda a sociedade paulista: “Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma”. Um outro argumento, o da toponímia tupi fixada pelos bandeirantes para além dos domínios paulistas, também não prova a usualidade comunicativa da língua tupi, mas apenas, o que não se nega aqui, a influência lexical da língua nativa no processo de crioulização do português. Um achado historiográfico de John Manuel Monteiro (2005:183), o inventário de Salvador Moreira, de 1697, demonstra ter existido, entre esse indivíduo e um certo Braz Moreira Cabral, um desentendimento pelo descumprimento que este dera ao empréstimo de dois índios “para servir de intérpretes numa expedição de apresamento do capitão Braz Moreira Cabral” (É curioso, entretanto, o que pode ser explicado pela ausência de acuidade lingüística para ter sua atenção chamada para um problema que refoge à linha de pesquisa do Autor, que mesmo diante da evidência dessa informação, Monteiro parece não ter atentado nela ao formar a opinião de que os sertanistas eram “conhecedores da língua geral” (2005:87) Esse documento confirma a hipótese do texto: a crioulização, no caso já acroletal a caminho da descrioulização, produzira uma língua sem aptidão para a intercomunicação entre a sociedade portuguesa e aportuguesada com falantes nativos e exclusivos da língua de base tupi: os índios a serem aprisionados.
É também pertinente perceber que o desenvolvimento político-econômico daquela
vila vem acompanhado de influências recebidas pelo português aí falado vindas do
espanhol, língua de outro branco conquistador, nos dois primeiros séculos. O fato é que,
ainda que por fogachos intermitentes, a língua castelhana estava sempre presente ali, sendo
considerada superior até mesmo ao português por muitos lusos, muito embora a figura
icônica da literatura espanhola, Cervantes, ao elogiar a língua valenciana, tenha dito: “Con
quien sola la portuguesa puede competir en ser dulce y suave”. Lope de Vega, em
“Descripción de la tapada de Vila Viçosa” escreve: “Así cantando fue la Portuguesa / con
celebrado aplauso larga historia, / a quien por la dulzura que profesa / entrambas
concedieron la victoria”, apud Pilar Vásquez Cuesta (1988:104). (Esse é um assunto que
renderia um novo tema dissertativo. Mas convém ainda acrescer, ainda que para regalo de
um bairrismo lingüístico, o que o poeta francês Lamartine (1790-1869) disse da língua
portuguesa: “langue plus latine et plus belle que l’espagnole”, no que foi seguido pelo poeta
americano Henry Longfellow (1807-1882) que afirmou: “the portuguese is softer and more
musical than the spanish”, apud Gilberto Freyre (1979:62)
Para essa influência do castelhano concorrerá a presença de espanhóis em
Piratininga, que é fato incontestável entre historiadores, especialmente após 1580, com a
unificação das duas coroas em favor de Felipe II. Frei Gaspar da Madre de Deus
(1975:134) chega a ir mais além quanto aos imigrantes que se estabeleceram no planalto:
Não era de admirar que, além dos portugueses, viessem os espanhóis,
holandeses e italianos estabelecer-se num país onde os seus habitantes
desfrutam as comodidades expendidas por Charlevoix; porque El-Rei
Católico nesse tempo era soberano de Espanha, Portugal, Nápoles, Milão
e Países Baixos, e os vassalos deste príncipe podiam habitar em qualquer
parte dos seus Domínios.
Jaime Cortesão (1958:289), a esse respeito, também escreve:
Não faltam
igualmente espanhóis que durante esse período se
fixaram no Brasil, mas estes em número bem menor
que os portugueses e luso-brasileiros na América
Espanhola. Apenas em São Paulo eles constituíram
parte apreciável na população da cidade e devem ter
contribuído para diferenciar o paulista, como
entidade regional na América portuguesa.
Nada autoriza a pensar, entretanto, que esse relacionamento fosse cordial entre
paulistas e espanhóis, como afirma Taunay em São Paulo no século... (2003:370):
Em São Paulo, desde os primeiros anos, vieram numerosos espanhóis
fixar-se, fenômeno muito natural se atendermos à série contínua de
navegações castelhanas dirigidas ao Rio da Prata, a alegria com que
na pequena vila se recebiam os novos moradores, a vida livre que
nela imperava e, afinal, o fato de, de 1580 em diante, serem todos os
iberos súditos do mesmo monarca.
Esse mesmo Autor acrescenta linhas depois, discorrendo inclusive sobre a
influência lingüística (2003:372): “A essa afusão abundante de sangue castelhano atribuem
escritores a gravidade e a reserva reinante entre os antigos paulistas que bastante os
diferenciavam dos demais brasileiros, o sotaque especial característico do seu falar pausado
e uma mentalidade de feição muito sua”. Esse contato foi sempre marcado por oscilações,
em que as desavenças afloravam por causa de conflitos de interesse e disputas bairristas de
antanho. Ainda estava presente na São Paulo do primeiro século, tanto que ela o registrou
nas atas da Câmara em 1585, o episódio em que oitenta portugueses sob as ordens de Pero
de Góis, lugar-tenente do donatário Martim Afonso de Sousa, foram mortos, em 1534, por
um tal Rui Mosquera, remanescente da esquadra de Caboto, como narra Cortesão
(1955:151).
O assunto, apenas abordado superficialmente por Taunay, tem maior
profundidade, inclusive do ponto de vista lingüístico, até porque há registro de que também
“já em 1552 vinha gente do Paraguai e que era freqüente a comunicação entre as duas
colônias, portuguesa e espanhola”, conforme Serafim Leite, apud Sérgio Buarque de
Holanda (1978:94). John Manuel Monteiro (2005:107) também situa entre 1620 e 1640
essa imigração de hispano-paraguaios, “sendo que estes últimos integraram-se às famílias
Bueno, Camargo e Fernandes”. Villalta (2002:344), reproduzindo o que afirma Gabriel
Soares de Sousa, equivocadamente limita essa influência lingüística do castelhano ao
período entre 1580 e 1640, quando teriam acorrido ao Brasil “napolitanos, milaneses,
neerlandeses e espanhóis, provenientes de regiões submetidas aos reis da Espanha”.
No plano metropolitano, de que deve ter havido reflexos no Brasil, existiu, como
se põe a descrever meticulosamente Pilar Vásquez Cuesta (1988), penetração da língua e
cultura castelhanas na corte portuguesa desde 1479 (1988:10, 21-3, 32-3), ou seja muito
antes da instituição da monarquia dualista, como ela mesmo escreve: “Enfim, o cultivo do
castelhano generalizara-se tanto em Portugal por essa época que resulta verdadeiramente
excepcional encontramos escritores que não tenham sucumbido alguma vez à tentação de
usá-lo”. Essa influência estava explícita na obra literária do criador do teatro português, Gil
Vicente. Isso é explicável porque o castelhano era língua da moda, que, como adita a
Autora, “além de distinguir da plebe, podia proporcionar poder e riqueza”. Sérgio Buarque
de Holanda, em artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, escrito para a Folha da Manhã em 26
de setembro de 1951, relata:
Nas peças de Gil Vicente, que escrevera bem antes de se acentuar em
Portugal o nacionalismo lingüístico - manifestado mais tarde com
Antonio Ferreira - já se notou que, onde aparece o bilingüismo, o
castelhano surge de preferência na fala das personagens de alta categoria.
E de modo geral a observação serve para se determinar o caráter de peças
inteiras. Não é por acaso, certamente, que na "Trilogia das Barcas", só a
230
da Glória, onde entram o "Papa", o "Cardeal", o "Arcebispo", o
"Imperador", o "Rei", o "Duque" e o "Conde", é toda em espanhol. Ao
passo que nas do "Inferno e Purgatório", em que se figura gente mais
miúda, o vernáculo domina. Isso é bem explicável quando se considere
que, ao tempo de Gil Vicente, era o castelhano, em Portugal, idioma
dignificante e nobre, próprio, por isso, dos homens de prol, sobretudo da
Corte. E assim, os diálogos nessa língua teriam significação em muitos
pontos comparável à dos diálogos em francês de certos romances russos
do século XIX.
No mesmo sentido escreveu Magaldi (1962:18): “Sabemos que, na obra de Gil
Vicente, o emprego do espanhol era conseqüência dos hábitos da corte: as classes elevadas
falavam o castelhano, enquanto o vernáculo era o idioma do povo”. Esse cortejo lingüístico
projetou efeitos prospectivos no Brasil, como se vê das duas peças, “Hay amigo para
amigo” e “Amor, engaños y celos”, do primeiro comediógrafo brasileiro, o baiano Manuel
Botelho de Oliveira (1637-1711), que foram escritas em espanhol, como informa o mesmo
Magaldi (1962:25).
Efetivamente, ao longo da monarquia dualista essa infiltração se fará bem mais
intensa, atravessando todo o período de sessenta anos, durante o qual certas atividades
culturais, como o teatro, eram praticadas exclusivamente em castelhano em Portugal,
continua Cuesta (1988:82-3, 86-9): “É esta a única conseqüência verdadeiramente grave da
invasão de Portugal pelas companhias de comédias espanholas a partir da entrada no Reino
de Filipe II: a quebra da tradição teatral portuguesa, que tardará mais de dois séculos e meio
a recompor-se”.
Prossegue essa Autora afirmando que isso gerou um ‘bilingüismo diglóssico’,
que, não sendo fruto de uma ideologia política (1988:89 e 95), produzirá marcas que
tardarão a desaparecer mesmo depois da Restauração (1988:142-4), até que no século
XVIII o francês passe a exercer um influxo exclusivista, assim como ao barroco sucede a
estética neoclássica. Equivoca-se parcialmente Cortesão (1958:78), que, apoiando-se no
historiador Queiroz Veloso, reproduz a afirmação deste de que “todas as características da
soberania – leis, governo, administração da justiça, moeda, língua – tudo Portugal
conservou”. Na verdade, essas promessas nunca saíram do papel, ou seja, do “Memorial de
las gracias y mercedes que el Rey mi Señor concederá a estes Reinos cuando fuere jurado
por Rey y Señor delles en que se incluyen las que les concedió el Sereníssimo Rey Don
Manuel el año 99 y otras de gran importancia para el bien universal y particular dellos”,
como o demonstra Pilar Vásquez Cuesta (1988: passim).
Apesar da inconformação popular com o cingir Felipe II a coroa portuguesa, até
mesmo porque nunca cumpriu nenhuma de suas promessas, sua resistência se limitou,
durante muito tempo, ao sebastianismo messiânico e providencialista que redimiria
Portugal transformando-o no Quinto Império, segundo anunciariam as coplas do Bandarra,
um sapateiro com supostos poderes divinatórios, e nas quais até o Padre Vieira (1608-1697)
acreditou, prestidigitando seu cumprimento em diversas manipulações argumentativas. Se a
alta burguesia, interessada em expandir-se através do império comercial espanhol, a
nobreza e o alto clero apoiavam a pretensão de Felipe II, não era difícil imaginar que o
processo de deserção e colonização lingüísticas a que foi submetido o português chegasse
também ao Brasil, incluindo Piratininga, onde a ordem religiosa mais atuante era a jesuítica, apoiadora de primeira hora do monarca espanhol, como relata Vásquez Cuesta
(1988:10 e 33).
Entre esses missionários havia muitos espanhóis de origem, a exemplo de João
Azpilcueta Navarro, que veio na primeira expedição, a de 1549, José de Anchieta, canarino,
ambos dominavam o castelhano embora de ascendência basca, e Antônio Blásques, tendo
ambos os últimos integrado a terceira expedição, de 1553, informa Serafim Leite (2004-I:
204). O próprio Nóbrega, português de origem, quando escrevia aos Padres Gerais Inácio
de Loyola e Diego Laynes, fazia-o em espanhol, até porque estudou em Salamanca, embora
se servisse dos amanuenses Antônio Blásques e José de Anchieta para dar acabamento
gramatical às epístolas, como informa Serafim Leite na introdução às Cartas do Brasil e
mais escritos do P. Manuel da Nóbrega (2000:34-5). José de Anchieta, embora falasse
fluentemente o português, não escrevia, diferentemente de Nóbrega, nessa língua, mas sim
em latim, como afirma Serafim Leite (1953b:68).
Assim, a penetração de povos de língua espanhola no planalto efetivamente
existiu, como se vê da incorporação à história de São Paulo de figuras como Francisco
Ramires, sevilhano, que chegou com seu filho Bartolomeu Bueno a São Paulo em 1571;
Baltazar de Godoy e Francisco de Saavedra, genros de Jorge Moreira; Jusepe de Camargo,
Martim Tenório de Aguilar, falecido em 1603, e Bartolomeu de Quadros – todos citados
por Taunay (op.cit., p.371-2). “Os castelhanos e flamengos começam a estabelecer-se aqui.
Os Ordonhez, Laras, Buenos, Ribeira ou Rivera, espanhóis, vêm desde esse tempo, bem
como os Lemes, Góis e depois os Taques eram de procedência flamenga”, escreve Teodoro
Sampaio (1978:168). Este mesmo Autor (p.171) escreve que “as transações com as colônias
espanholas do Rio da Prata começaram a avultar depois da união à coroa de Espanha. O
açúcar, o algodão, as caixas de marmeladas, e até escravos eram artigos de comércio com
Buenos Aires”.
Villalta (2002:344) também se refere a espanhóis que se estabeleceram “de modo
expressivo em São Paulo, [onde] exerceram seus ofícios, galgaram cargos públicos,
tornaram-se ‘homens bons’ e casaram-se, até mesmo com índias, como era costume na
terra”. John Manuel Monteiro (2005:69) também enfrenta a questão:
Se é verdade que os paraguaios e paulistas conseguiram forjar uma
relação harmoniosa nas terras indefinidas – às custas dos Guarani, é claro
–, tal relação foi desestabilizada pelos missionários jesuítas que se
instalaram na região a partir de 1609 (...). Desde o princípio, os jesuítas
cultivaram péssimas relações com os colonos de ambos os lados.
Quanto às relações entre ambos povos ibéricos na América, mesmo no período da
monarquia dual, o que se pode dizer é que foram, em certos momentos, de cautela e
suspeição recíproca. Nóbrega em carta escrita de Salvador em agosto de 1557 confirma isso
ao relatar:
Ajuntava-se a isto parecer-me que estando lá os da Companhia se
apagariam alguns escândalos que os castelhanos têm dos portugueses
e, a meu parecer, com muita razão, porque usaram muito mal com
uns que vieram a São Vicente, que se perderam de uma armada do
Rio da Prata.
Em outros momentos, essa beligerância alternava-se com solidariedade contra o
índio e mesmo contra franceses, como revela Nóbrega em carta escrita da Bahia a 5 de
julho de 1559 (2000:353), em que relata que “o capitão do Paraguai se mandou oferecer por
vezes que sujeitaria os Tupis a São Vicente, se lhe dessem licença, e querem com os
portugueses trato e conversação, e ajudá-los contra o gentio e outros inimigos”.
Efetivamente, entretanto, a influência da língua espanhola existiu sobre a
portuguesa falada em São Paulo nos primeiros dois séculos, para o que concorreu a
ausência de indisposição lingüística dos portugueses e brasileiros que aí habitavam, além
do senso de acomodação dos próprios espanhóis, como se lê da grafia aportuguesada de
muitos de seus nomes, embora a colonização lingüística que teve lugar em Portugal não
tenha se reproduzido de forma especular nas incultas terras dos brasis, especialmente a
paulista, onde o palco de manifestações culturais se limitava ao ingente esforço
dramatúrgico de Anchieta, cujas peças eram vazadas em português, castelhano e tupi,
lembra Francisco Assis Fernandes (1980:82), mostrando o respeito pela convivência
lingüística, em que havia uma influência recíproca, até pela alta consideração e respeito em
que os jesuítas de Portugal eram tidos pelos paraguaios, especialmente Nóbrega, como o
demonstra uma passagem da “Relación Breve”, de Domingos de Irala, em que o
Governador do Paraguai dava a conhecer, em 1556, ao Marquês de Mondejar, “a
conveniência que havia em ganhar-se o favor desse jesuíta ‘por ternerle respecto y
acatamiento los dichos topis ques gente indomita’”, narram Sérgio Buarque de Holanda
(1978:94) e Serafim Leite, este em notas às cartas de Nóbrega (2000:199).
Não parece correto afirmar-se que houve uma concorrência com o espanhol, como
quer Luiz Carlos Villalta (2002:334). Deu-se aí, na verdade, nessa relação de vicinalidade
lingüística, uma situação de adstrato, em que nenhuma das línguas intervenientes
desaparece. No caso de Piratininga, é mais apropriado falar-se, especificamente, em
“adstrato superposto”, que, segundo M. Valkhoff, apud Bassetto (2001:164), “designa a
influência entre duas línguas correntes em territórios limítrofes”, já que não ocupavam
simultaneamente o mesmo território – a não ser em situações interseccionais de caráter
excepcional –, a exemplo do “antigo castelhano e o basco, as línguas da Gália e o latim da
‘Província’, até a conquista de Caio Júlio César (51-50 a.C), as línguas germânicas e o
latim antes das invasões e o dialeto romeno da Transilvânia e o húngaro desde o tempo dos
Habsburgos”, arremata esse Autor.
Num trecho do auto Na Vila de Vitória, Anchieta, apud Magaldi (1962:18),
escreve:
Pergunta o Governo à ‘Villa de Victoria’: ‘pois que sois de Portugal,/
como falais castelhano?’ - ao que a interlocutora responde: ‘Porque
quiero dar sua gloria/ a Felipe, mi señor,/ el cual simpre es vencedor,/ y
por él habré victoria/ de todo perseguidor./ Yo soy suya, sin porfia,/ y él
es mi rey de verdad,/ a quien la suma bondad/ quiere dar la monarquia/
de toda la cristiandad.
Esse passo do teatro anchietano, que foi escrito com passagens em espanhol,
mostra a existência de uma comunidade multilingüe em Piratininga e não deve ser
entendido somente como uma homenagem a Felipe II, monarca das duas coroas, como
pensa Magaldi (1962:18), já que uma leitura de outras partes do mesmo auto entremostra
não existir a exclusividade dessa conexão feita pelo teatrólogo. É de Sérgio Buarque de Holanda a seguinte análise, extraída do artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, publicado no
jornal Folha da Manhã, em 26 de setembro de 1951:
Nas obras de Anchieta, que acaba de publicar o Museu Paulista, a
variedade das línguas utilizadas justifica-se por vezes no mesmo texto.
Em "Na Vila de Vitoria" nota-se que "Lúcifer" fala sempre em português
e "Satanaz" - seu servidor - em espanhol. A razão da preferência é dada
pelo próprio personagem,
quando (à pág.29) exclama:
"Esta mano
es mas fuerte que el tirano
para hacer negar a Dios
Per eso mudé de voz:
para hablarle castelhano
y mostarme más feroz".
O que, note-se de passagem, pode servir para mostrar o juízo que dos
castelhanos (ou de sua língua) faziam então os lusitanos, juízo esse
perfilhado mesmo por quem, como Anchieta, nascera em terras de
Espanha”.
Essa ironia também acontecia do outro lado, como narra John Manuel Monteiro
(2005:76) a respeito dos índios Mbororé, que encenaram aos jesuítas das reduções
espanholas uma peça de teatro “na qual era reconstituída a heróica vitória contra os
‘lusitanos’”.
A influência do espanhol, além de matrizes fonéticas que comumente se afirma perceptíveis no sotaque dos paulistas, fezse
sentir no léxico. Em vários documentos examinados para fins historiográficos por John Manuel Monteiro, vê-se a nitidez dessa
influência lexical, a exemplo de trecho do testamento de Inês Pedroso, no século XVII, em que consta, a respeito da alforria das escravas
Generosa e Custódia, que ambas “ficarão forras em obrigação de servidumbre alguma nem o filho nem a filha...” (2005:212). Não é o
único exemplo que se vê da pesquisa arquivística feita por esse Autor: Em seu testamento de 1682, Maria Diniz “referiu-se a ‘um rapagão
por nome Custódio, o qual é forro e livre, e o não poderão obrigar a nenhuma servidumbre...’” (p.169-70, sem grifos no original). A
utilização dessa unidade léxica, que não pertence à etimologia da língua portuguesa, revela essa influência, não percebida por aquele
historiador, até nos escritos oficiais no século XVII, contrastando com o que se vê em documento de igual natureza lavrado já em 1721 na
vila de Itu: “Neste, Micaela Bastarda, que havia sido alforriada em 1703 por Gonçalo de Pedrosa, deixando-a ‘livre de toda a servidão e
administração...’” (idem, p.217). Segundo a atenta observação de Alcântara Machado (1980:216), que, em contraste com a “pobreza
verbal dos documentos quinhentistas”, os escritos testamentários revelam uma “elevação do nível intelectual” porque “em geral, quem
redige a cédula pelo testador é um monge ou clérigo regular”. Sendo assim, mais forte se desenha a presença lingüística do espanhol se
ela é visível até mesmo nos estratos superiores do letramento intelectual.
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sábado, 24 de dezembro de 2016
6.6 FRANCESES E LÍNGUA GERAL (Transcrição)
6.6 FRANCESES E LÍNGUA GERAL
O plano de conquista e ocupação francês se revela, a cada passo das cartas
jesuíticas e escritos dos primeiros cronistas, de atilada preocupação de captação do indígena
através de imersão em seu mundo, sobressaindo das movimentações gaulesas a
preocupação com o aprendizado célere e eficiente da língua indígena. Um trecho de
Anchieta em Informações...(1988:319) é muito claro quanto a isso: “Deixavam [os
franceses] na terra que aprendessem a língua dos índios, e homens que fizessem ter prestes as mercadorias para quando viessem as naus”. Os gauleses, nesse plano estratégico,
exploravam inclusive a prática cultural do cunhadismo entre os índios Tupi, tanto com os
Tupinambá no Maranhão quanto com os Tamoio no Rio de Janeiro, tática de infiltração que
deu lugar ao tipo pitoresco do “índio louro”, fruto da miscigenação desses futuros “línguas
com as nativas”. Informa Gabriel Soares de Sousa (2000:291):
Deixavam [os franceses] entre os gentios alguns mancebos para
aprenderem a língua e poderem servir na terra, quando tornassem da
França, para lhes fazer seu resgate; os quais se amancebaram na terra,
onde morreram, sem se quererem tornar para a França, e viveram com os
gentios com muitas mulheres, dos quais, e dos que vinham todos os anos
à Bahia e ao rio de Seregipe em naus de França, se inçou a terra de
mamelucos, que nasceram, viveram, e morreram como gentios; dos quais
há hoje muitos descendentes, que são louros, alvos e sardos, e havidos
por índios Tupinambás, e são mais bárbaros que eles.
É também nessa linha a descrição de Freyre (2002a:165): “Meninos que
cresceram à toa, pelo mato; alguns tão ruivos e de pele tão clara, que, descobrindo-se mais
tarde a eles e a seus filhos entre o gentio, os colonos do fim do século XVI facilmente os
identificaram como descendentes de normandos e bretões”. Com igual tez eram os filhos
dos Potiguara, “senhores da Paraíba, 30 léguas de Pernambuco [....] grandes amigos dos
franceses [....] casando com eles suas filhas, no relato de Cardim (1980:102) e de Villalta
(2002:342-3). Também Capistrano de Abreu (1963:85) dá notícia desse mestiçamento cujas
marcas foram deixadas no litoral e sertão da Paraíba e Ceará. Em duas passagens de suas
Cartas... (1988: 215), Anchieta registra a simpatia de um índio tamoio pelos franceses, cuja
filha, que lhe deu um neto, era amancebada com um deles. Na outra passagem, o jesuíta,
então prisioneiro dos Tamoio no episódio de Iperoig, em que, após momentos de vívida
tensão no processo de negociação de paz, que “significa a vitória sobre os franceses
estabelecidos nas ilhas da baía do Rio de Janeiro”, escreve Teodoro Sampaio (1978e:241),
pôs-se a dialogar francamente com um francês na língua brasílica, dado inexistir entre
ambos outra língua de intercomunicação (1988: 218).
A influência lingüística das investidas dos franceses às costas do Brasil, que
progrediram a partir do primeiro terço dos Quinhentos, também projetou influência na
língua geral falada em São Paulo, já que os tamoios, que eram índios tupis, depois de terem
mantido longa aliança com os gauleses, foram dominados pela colonização portuguesa.
Mesmo em São Vicente sua presença foi registrada, como escreve Nóbrega (2000:330) ao
informar que “é cercada [a Capitania de São Vicente] de todas as partes de seus inimigos,
scilicet, contrários e franceses” e ainda por documento encontrado por Jaime Cortesão
(1955:218) . O reverso dessa influência é ainda mais acentuado, já que ao léxico francês
foram incorporados vários vocábulos tupis, conforme antigo e meticuloso estudo de
restauração gráfica feito por Rodolfo Garcia (1944:131), que escreve:
O Tupi foi dos maiores contribuintes nesse saqueio operado pela
civilização ocidental, o que se explica pela circunstância de que os povos,
que falavam a língua depois assim chamada, eram os ocupantes da
extensão mais considerável do litoral sul-americano e foram os primeiros
a entrar em contacto ou em choque com os navegantes e traficantes
europeus, os franceses em magna parte.
Dos livros de viagens passaram aqueles termos, mais ou menos alterados,
para a literatura científica, para a linguagem corrente, e daí para os
dicionários, incorporados ao patrimônio idiomático de cada povo.
Sofreram naturalmente modificação gráfica, de acordo com a
organização glótica dos indivíduos que os receberam; mas essa alteração
não é tanta que a um exame mais atento se não denuncie a origem da
palavra e lhe não permita a identificação quanto possível perfeita.
Por outro lado, esse enfoque da presença francesa mostra a importância da língua
geral e seu aprendizado pelos exploradores contrários ao missionamento feito pelos padres
da Companhia de Jesus.
Havia uma guerra ideológica pervadida por discursos em língua tupi na tentativa
de cooptar os poderosos e beligerantes índios nativos. Considerando sua condição de
invasores, não era menor o empenho dos franceses em seduzir os nativos, atirando-se a uma
indianização só comparável àquela a que se submeteu João Ramalho, embora aí por
motivos diversos. A sedução dos Tamoio, sobretudo, significava incutir-lhes a imagem de
docilidade e adaptabilidade dos gauleses, além de tudo generosos na distribuição de
produtos de seu avançado progresso técnico em comparação com a idade da pedra em que
viviam os índios. Esse trecho de Anchieta (1988:219) ilustra a estratégia francesa na
imersão cultural e lingüística com os Tamoio:
A vida dos Franceses que estão
neste Rio é já não somente hoje apartada da Igreja Católica, mas também
feita selvagem; vivem conforme aos Índios, comendo e bebendo, bailando
e cantando com eles, pintando-se com suas tintas pretas e vermelhas,
adornando-se com as penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com
uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos
Índios.
Darcy Ribeiro (2001:85) mostra como essa indianização dos franceses obedeceu a
um plano bem estruturado, valendo-se inclusive das mesmas técnicas dos portugueses:
Os franceses, por igual,
fundaram seus criatórios com base no cunhadismo. Tantos que, no dizer
de Capistrano de Abreu, por muito tempo não se soube se o Brasil seria
português ou francês, tal a força de sua presença e o poder de sua
influência junto aos índios. O principal deles foi o que se implantou na
Guanabara, junto aos Tamoio do Rio de Janeiro, gerando mais de mil
mamelucos que viviam ao longo dos rios que deságuam na baía. Inclusive
na Ilha do Governador, onde deveria se implantar a França Antarctica.
Para Florestan Fernandes (2000:801-1), na passagem a seguir transcrita, essas
relações dos franceses com os indígenas não tiveram o mesmo cunho exploratório das
travadas pelos nativos com os portugueses.
Os brancos viviam nos grupos locais, literalmente sujeitos à vontade dos
nativos; ou se agrupavam nas feitorias, dependendo tanto sua
alimentação quanto sua segurança do que decidiam fazer os “aliados”
indígenas. Os contactos dos Tupis com os franceses sempre se fizeram
segundo esse tipo de relação. Mas, a partir de 1533, aproximadamente, os
portugueses puderam alterar, em várias regiões ao mesmo tempo, o
caráter de seus contactos com os indígenas, subordinando-os a um padrão
de relação mais favorável com seus desígnios de exploração colonial da
terra, dos recursos que ela possuía e dos moradores nativos. (....)
Subverteu-se o padrão de relação, passando a iniciativa e a supremacia
para as mãos dos brancos, que transplantaram para os trópicos o seu
estilo de vida e as suas instituições sociais.
Essa apreciação do sociólogo paulista é equivocada. A imersão dos franceses no
mundo dos Tamoio não significava senão refinado planejamento estratégico de construir
aliança com aquela etnia indígena, elemento de vital importância para desmontar a máquina
portuguesa instalada, não lhes sendo útil nem necessário iniciar um processo de
apresamento, escravização e dizimação de índios como os portugueses fizeram muitas
vezes de forma contraproducente. O que viria depois, se tivesse sido bem-sucedida a
colonização francesa, é algo que não convinha pensar naquele momento. O que se vê dos
vários passos dos escritos jesuíticos é que os Tamoio foram tecnicamente preparados pelos
franceses para guerrear com os colonos e jesuítas portugueses. Anchieta deixa isso claro
tanto em Cartas... (1988:209 e 219): “com isto e com lhes dar todo gênero de armas,
incitando-os sempre que nos façam guerra e ajudando-os nela”, quanto em Informação do
Brasil e suas capitanias (1988:313): “a nação dos Tamoios, que ainda estava muito
soberba e forte com muitas armas dos Franceses, espadas, adagas, montantes, arcabuzes e
tiros grossos”.
Pode-se dizer que a infiltração dos franceses na cooptação dos Tamoio foi
eficiente. Esses métodos na persecução de etapas cada vez mais bem-sucedidas consistiam,
muitas vezes, em hostilizar até mesmo seus nacionais de coloração católica, que pudessem
representar uma dissensão ao discurso de desmonte da pregação dos jesuítas, a exemplo do
que aconteceu com os frades da ordem de São Bernardo chegados ao Rio, que, mesmo
vivendo afastados, foram submetidos a perseguição e morte pelos índios Tamoio a instância
dos franceses. Os remanescentes deles, expulsos do Brasil, foram mortos pelos
exploradores franceses antes de pisarem em solo francês, relata Anchieta (1988:218). A
contraparte portuguesa era de igual medida, tanto que nas lutas de expulsão dos franceses
do Rio de Janeiro em 1564, Estácio de Sá, depois de lançar fora “150 Franceses que havia
dentro em uma nau”, decidiu por deixá-los “ir em paz por serem mercadores e ao parecer
católicos, que não vinha povoar”, relata Anchieta em Informações... (1988:315).
Outro exemplo dessa eficiência nos meios suasórios instrumentalizados pelos
franceses com o domínio da língua geral se vê do episódio do processo de paz em Iperoig,
em que recorrentemente aparecia um desses índios vindos do Rio de Janeiro para tentar,
insidiosamente, convencer seus irmãos de supostas más intenções dos cristãos portugueses
na negociação de paz. Apesar de pilhados em suas mentiras, esses tamoios, mesmo depois
de concluída com êxito a negociação, nunca se deixaram apartar do convívio e aliança com
os franceses, como narra Anchieta (1988: 245): “Dos [tamoios] do Rio já quase tínhamos o
desengano que não queriam pazes”. Mas ele mesmo admite que o sistema de aliança
adotado pelos franceses tinha muita penetração, a ponto de prever que mesmo os Tamoio de Iperoig poderiam voltar à animosidade inicial: “Só os moradores dos lugares de Iperuig
hão sido constantes até agora e alguns deles ainda estão entre nós; mas por fim farão o que
a maior parte dos seus fizerem”. Em outro passo, Anchieta (1988:244) mostra a dificuldade
de quebrantar a manipulação ideológica dos franceses nos tamoios: “Eles mesmos nos
avisavam que não nos fiássemos dos do Rio de Janeiro, porque estão mui soberbos com as
muitas coisas que lhe dão os Franceses”.
O padre canarino deixa claro que a forma como foram “injustiçados” pelos
portugueses criou essa desavença que tanto trabalho deu às missões jesuíticas, chegando a
pôr-lhes em risco a sobrevivência (1988:202):
Desta outra banda do Norte temos os contrários, inimigos também destes
nossos Índios, dos quais muitas vezes tenho escrito. Estes parece que têm
justiça contra os Portugueses, pelas muitas injustiças e sem razões que deles
têm sempre recebido, e por isso os ajuda sempre a Divina Justiça, porque
vêm mui a miúdo por diversas partes, por mar e por terra, se sempre levam
escravos dos Cristãos, matando os mesmos homens.
Nas Informações...(1988:318) ele acresce: “ Os Franceses não desistiram do
Brasil, e o principal foi no Cabo Frio e Rio de Janeiro, terra de Tamoios, os quais, sendo
dantes muito amigos dos Portugueses se levantaram contra eles por grandes agravos e
injustiças que lhes fizeram, e receberam os Franceses, dos quais nenhum agravo
receberam”. É ainda esse jesuíta quem relata que a prática exterminadora levada a cabo
pelos portugueses contra os índios era a responsável pelo despovoamento de áreas atacadas
por exploradores estrangeiros, contra os quais a aliança com índios amigáveis fez muita
falta (1988:314):
Deu tanta guerra [Duarte
Coelho, filho] aos Índios com favor de um clérigo que se tinha por
nigromântico que destruiu toda a sua Capitania e assim desde o rio de
S.Francisco até lá, que são 50 léguas, não há povoação de Índios, e fica
agora sem ajuda deles, e é agora aquela Capitania [Pernambuco] com a
de Itamaracá, que toda se reputa por uma, mui molestada dos Índios
Pitiguaras, moradores do rio chamado Paraíba, onde têm grande
comércio os Franceses por causa do pau de Brasil, e os ajudam nas
guerras e fazem muito mal por terra e por mar aos Portugueses, os quais
não têm Índios amigos que os ajudem porque os destruíram todos.
A seguinte informação dada por Capistrano de Abreu (1963:76) conflui para
a veracidade desse último depoimento: “Com a derrota dos naturais de Paraguaçu e
Ilhéus destruiu-se o que poderíamos chamar uma marca da língua geral e irromperam
os Tapuias, até então sopeados. Ninguém lucrou com a substituição”.
Dessas passagens, algumas conclusões se impõem: a primeira é que o discurso
catequético, através da língua geral, não se revelava de incontrastável infalibilidade, nem
mesmo em relação a índios já completamente aculturados e escolarizados, como no caso
daquele referido pelo quinhentista Ambrósio Fernandes Brandão (1994:239-40):
Os Padres da Companhia ensinaram a um destes índios, por sentirem nele
habilidade, a ler e a escrever, canto e latinidade, e ainda algum pouco das
artes, mostrando-se ele em tudo mui ágil e de bons costumes; chegaram a
lhe fazer dar ordens menores, e cuido que ouvi dizer que também as de
epístola e evangelho, para o ordenaram em sacerdote de missa. Mas o
bom do índio, obrigado de sua natural inclinação, amanheceu um dia
despido, e se foi, com outros parentes seus, para o sertão, aonde exercitou
seus bárbaros costumes até a morte, não se alembrando dos bons que lhe
haviam dado.
O próprio Nóbrega (2000:222) dá notícia de um índio, criado desde pequeno,
“bom cristão” que, no entanto, “fugiu-me para os seus”.
A segunda é que o domínio da língua geral era peça-chave no xadrez político de
todas as nações com interesse econômico no Brasil, ainda que essa forma de dominação
viesse sob a forma de discurso religioso.
4.2 O PADRE MANUEL DA NÓBREGA EM PIRATININGA (Transcrição)
4.2 O PADRE MANUEL DA NÓBREGA EM PIRATININGA
Uma das razões por que Nóbrega se decidiu ir para a Capitania de São Vicente foi
por ter enfrentado certa animosidade por parte do Bispo Pedro Fernandes Sardinha
(2000:132-4, 150, 178 e 192; LEITE, 2004-I:17). Especialmente em carta escrita da Bahia a
5 de julho de 1559 (2000:322), ele entremostra sua decepção com o comportamento do
Bispo e com a devassidão e fuga dos deveres dos demais clérigos, para declarar que “vendo
eu isto logo em seu princípio, cuidei de dor perder o siso, e assim como desesperado de
poder na terra nem com os cristãos nem com o gentio fazer fruto, me fui com V.M. a São
Vicente, correndo a costa, desabrindo a mão de tudo”. Um dos pontos da desinteligência
com Bispo dizia respeito à utilização de intérprete na confissão, que, segundo este,
implicava em quebra do sigilo sacramental. Nóbrega empregava esse recurso largamente
em razão da falta de jesuítas-línguas ainda em 1552, quando escreve (2000:131) da Bahia
ao Provincial Simão Rodrigues, em Lisboa:
Contrariou-nos isto muito o Bispo, dizendo que era coisa nova e que na
Igreja de Deus se não costuma. (...) Esta é coisa mui proveitosa e de muita importância nesta terra entretanto que não há muitos Padres que
saibam bem a língua, e parece grande meio para socorrer a almas que
porventura não têm contrição perfeita para serem perdoados e têm
atrição, a qual com a virtude do sacramento se faz contrição: e privá-los
da graça do sacramento por não saberem a língua e da glória por terem
contrição bastante, e outros respeitos que lá bem saberão, devia-se bem
de olhar.
Em nova carta endereçada ao mesmo Provincial, escrita de Salvador em fins de
agosto de 1552, Nóbrega reitera a importância da questão, consultando o que fazer, ou seja,
“se se poderão confessar por intérprete a gente desta terra que não sabe falar nossa língua”.
Decidiu-se ele, então, a ir para a Capitania de S. Vicente, de onde os padres
irradiavam “línguas pelos campos, aldeias a engenhos dos arredores” (LEITE, 2004-I:89),
aonde chegou em 1553, tendo sido precedido, por cerca de três anos, pelo padre Leonardo
Nunes, o Apóstolo de Piratininga, que, fazendo-se acompanhar do Irmão Pero Correa,
como língua, “o único que até então pregava na língua dos índios”, esteve no Campo de
Piratininga.
Aí nesse lugar Nóbrega fundou o núcleo catequético que iria dar lugar à Vila e
posteriormente Cidade de São Paulo, num triângulo de quatro alqueires formado pelos
ribeiros de Tamanduateí e Anhagabaú, centralizando o complexo hidrográfico da região,
além de ser “escala para muitas nações de índios” (LEITE, 2004-I:93). Era, em suma, uma
torre alta de observação e exploração descortinando-se para o Prata e Amazônia, tendo
tamoios ao norte, tupiniquins e guaianases ao centro e guaranis ou carijós ao sul, como
eram chamados aqueles em São Paulo, esclarece Capistrano de Abreu (1963:126).
As razões topográficas que ensejaram a primeira fundação de São Paulo por
Martim Afonso de Sousa, ao dar execução ao plano geopolítico de D. João III, eram as
mesmas agora que guiavam os passos de Nóbrega, “com a única diferença de que, no
primeiro caso, se tratava de uma expansão territorial e econômica e, no segundo, duma
expansão religiosa”, adverte Cortesão (1955:201). É o próprio Nóbrega (2000:190) quem
afirma: “E é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas gerações do
sertão”, ou, nas palavras de Anchieta, em carta escrita de Piratininga em 1554 (1988:48),
“entrada a inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão”. Foi “uma intuição verdadeiramente profética”, como bem diz Sérgio Buarque de Holanda (1978:96), não se podendo deixar de
admitir que não lhe tenha escapado “a alta significação histórica de um esforço
expansionista que outros iriam retomar para dano da Companhia”.
Ao isolamento e guarnecimento pela muralha da Serra do Mar se somava ainda o
distanciamento do contato com portugueses, já que Nóbrega via nisso uma forma de
otimização do plano catequético, como deixa claro em carta escrita de São Vicente, em
1553, ao provincial Simão Rodrigues (2000:154): “E, segundo o nosso parecer e
experiência que temos da terra, esperamos fazer muito fruto, porque temos por certo que
quanto mais apartados dos Brancos, tanto mais crédito nos têm os índios”. Teodoro
Sampaio (1978b:158 e 1978e:236) empresta apoio a esse planejamento ao afirmar que
“assim era preciso, para que sementeira do Evangelho se não perdesse com o degradante
proceder e triste exemplo dos maus cristãos”
Esse isolamento foi instado, portanto, pela impressão desfavorável que a princípio
lhe cunhou João Ramalho, de Santo André da Borda do Campo, embora, posteriormente,
segundo o mesmo Serafim Leite (2004-I: 100-1), “tudo se desanuviou”. Deve-se isso ao
gênio de Nóbrega sempre pensando mais alto em favor dos objetivos missionários. Sua
capacidade de dialogar, transigir e até mesmo recuar na hora certa, para avançar no tempo
adequado, permitia que problemas aparentemente insolúveis fossem equacionados. Sérgio
Buarque de Holanda (1978:96) penetra no móvel dessa atitude de Nóbrega: “Quando
concilia os padres com João Ramalho, pecador e excomungado, não é por simples
condescendência de momento, não é por um fácil oportunismo, mas porque vê em tal
recurso o meio decisivo de converter o gentio, uma das finalidades precípuas de sua
Ordem”. Pesaram, ainda, na decisão do maioral dos jesuítas no Brasil, as turbulências da
proximidade do colono português e seus descendentes mamelucos na Vila de São Vicente.
Capistrano (1963:73) sintetiza tudo isso:
Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a
presença de tribos próprias à conversão por sua índole mansa, e, além do
afastamento dos portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os
índios do Paraná e Paraguai. O nome de S. Paulo, agora ouvido pela
primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro.
Esse distanciamento em relação aos brancos mais se afigurará premente aos jesuítas após o fracasso dos aldeamentos na Bahia, os primeiros do Brasil, que se iniciaram no Recôncavo baiano. Aí o escravismo imposto pelos brancos redundou em insucesso daquele sistema: “analisando este fracasso, os jesuítas tentaram organizar ulteriormente – sobretudo nos ciclos sertanejo e maranhense – as missões em outros termos, procurando afastar os aldeamentos dos centros de colonização, para assim evitar o escravismo colonial”, nota Hoornaert (1997:31). A locação no planalto “foi uma intuição de gênio” (LEITE, 2004-I:93), embora parecesse ir na contramão do roteiro até então seguido, que era de ocupação da costa em primeiro lugar. Bruno (1966:12) chega a estranhar a proibição, feita pelo donatário Martim Afonso de Sousa, de migração de brancos da costa para o planalto:
Esse distanciamento em relação aos brancos mais se afigurará premente aos jesuítas após o fracasso dos aldeamentos na Bahia, os primeiros do Brasil, que se iniciaram no Recôncavo baiano. Aí o escravismo imposto pelos brancos redundou em insucesso daquele sistema: “analisando este fracasso, os jesuítas tentaram organizar ulteriormente – sobretudo nos ciclos sertanejo e maranhense – as missões em outros termos, procurando afastar os aldeamentos dos centros de colonização, para assim evitar o escravismo colonial”, nota Hoornaert (1997:31). A locação no planalto “foi uma intuição de gênio” (LEITE, 2004-I:93), embora parecesse ir na contramão do roteiro até então seguido, que era de ocupação da costa em primeiro lugar. Bruno (1966:12) chega a estranhar a proibição, feita pelo donatário Martim Afonso de Sousa, de migração de brancos da costa para o planalto:
Que havia uma diretiva administrativa que assegurasse o povoamento do litoral
em face da fragilidade de suas defesas, não há dúvida. O trecho seguinte de Gândavo
(1995:4) confirma essa orientação: “Não há pela terra dentro povoações de portugueses por
causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é
necessário estarem juntos ao mar, para terem comunicação das mercadorias. E por este
respeito vivem todos juntos da Costa”. O propósito de Martim Afonso ao fundar uma
povoação no planalto de Piratininga nada tem de conflitante ou excludente dessa política de
povoamento. Ela se situa num plano estratégico que foi muito bem elucidado por Cortesão
(1955).
Nessa protopovoação fundada por Nóbrega foi convidado a morar Tibiriçá, que já
vivia nas imediações – uma de cujas filhas coabitava com João Ramalho; outras duas se consorciaram com Pero Dias e Lopo Dias, informa Taunay (2003:282) –, soberano dos
Tupiniquim cuja aldeia se situava à margem do ribeiro Piratininga, conforme Frei Gaspar
da Madre de Deus (1975:120). Segundo este Autor (p.123-4), o principal dos Tupiniquim
acedeu ao apelo e fixou sua aldeia onde é hoje o Mosteiro de São Bento. Sua importância
axial para os destinos dos inacianos em Piratininga impõe uma breve digressão a seu
respeito, em que fica claro, também, como sua simpatia pela catequese branca deve ter
influenciado os demais índios sob sua orientação: Foi batizado com o nome de Martim
Afonso – nome de batismo igualmente dado a outro importante índio, Araribóia, principal
dos Temiminó, também aliados dos portugueses – tendo exercido relevante papel na defesa
do ideal daqueles loiolistas, até mesmo quando os Tupi, em 1562, se levantaram contra São
Paulo. Tibiriçá conclamou seus índios a que “defendessem a igreja, que os padres haviam
feito para os ensinar a eles e a seus filhos, que Deus lhes daria vitória contra seus inimigos,
que tão sem razão lhes queriam fazer guerra” (LEITE, 2004:104). Entre os sediciosos
estaria um outro principal, irmão de Tibiriçá, Piquerobi, o que é discutível (LEITE, 2004-I:
103), que tentou, sem êxito, persuadi-lo de apoiar os inacianos, como relata Antônio
Alcântara Machado em nota a Cartas... de Anchieta (1998:205), além de seu sobrinho,
Jaguanharó, escreve John Manuel Monteiro (2004:34). Deixou longa descendência
sanguínea no tronco paulista. Sua morte foi lamentada e registrada com pesar numa das
cartas de Anchieta (1988:196-7), ainda porque “foi um dos sustentáculos do Colégio, ao
começo, quando escasseavam as esmolas e ainda não havia portugueses” (LEITE,
2004:104). Por ocasião de sua morte, os jesuítas declararam-no “fundador e conservador da
casa de Piratininga” (ANCHIETA, 1988:197). Foi sucedido, no posto de chefe militar, por
João Ramalho (LEITE, 2004:103), mas não às vésperas do cerco, como quer John Manuel
Monteiro (2004:34).
De igual forma procedeu Caiubi, senhor de Geribatiba. Também foi batizado
pelos jesuítas, tendo ganhado o nome de “João”. “Auxiliou-os na fundação de São Paulo:
Os jesuítas convidaram Caiubi a estabelecer-se nas imediações do sítio escolhido”, diz
Serafim Leite (2004-I: 93), no que é consonante com Frei Gaspar da Madre de Deus
(1975:123-4). Segundo Antônio Alcântara Machado, em nota a Cartas... de Anchieta
(1988:185), Caiubi assentou-se com sua gente ‘no extremo sul, próximo do sítio que
depois se chamou Tabatagoera (hoje Tabatinguera)’, onde tinha ‘sob sua guarda o caminho que do alto do espigão descia para a várzea e tomara para São Vicente por Santo André”.
Nóbrega, no Diálogo sobre a Conversão do Gentio (2000:246), considera Caiubi um
exemplo de fé cristã: “Que direi da fé do grão velho Caiubi, que deixou sua aldeia e suas
roças e se veio morrer de fome em Piratininga por amor de nós, cuja vida e costumes e
obediência amostra bem a fé do coração”.
Para essa povoação foram acorrendo índios de todas as redondezas, o que irá
provocar sentimento de animosidade em João Ramalho, o decano morador do Campo.
A FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO PELOS JESUÍTAS. Transcrição)
"Outra (povoação) está doze léguas pela terra dentro,
chamada São Paulo, que edificaram os Padres da
Companhia". Pero de Magalhães Gandavo, História da
Província de Santa Cruz (1576), ed. de São Paulo, 1922,
pág. 76.
"Muitas destas fontes históricas... são documentos
da Companhia de Jesús, que foi a própria fundadora da
grande Cidade e o foco inicial da cultura paulista, com
o seu famoso Colégio." — S. Leite, VI, XVII.
.........................................................................................................................................................................
III — ALDEIA DE PIRATININGA
Piratininga era o nome que davam os índios a um "ribeiro
afluente do Tietê", que, extravasando na cheia, deixava a secar ao,
sol quantidade de peixes, ao refluir para o leito na vazante. Mui-.
to se tem discutido sôbre a sua identificação. A carta de Nóbrega,
de 2 de setembro de 1557, que o distingue claramente do Tietê
ou "Rio Grande" (10); a petição de Luís da Grã, em 1560, e
o respectivo despacho (11) para troca de uma data de terras,
das suas margens onde impedia a expansão da Vila, para junto
ao novo caminho do Cubatão, em direção ao rio "Geribatiba-açú",.
o Rio Grande dos Pinheiros; a discriminação geográfica dêsses rios .
por Frei Gaspar da Madre de Deus (12), me levam a preferir a
opinião dos que o identificaram com o Tamanduateí (13) .
Campos de Piratininga era como se conheceram as terras
banhadas por êsse rio, que contornava à sua esquerda ampla e
boscosa elevação existente entre êle, o largo vale do Jurupatuba
(Rio dos Pinheiros) e que vinha morrer suavemente a meia légua
de distância do Anhembí ou Rio Grande, atual Tietê. Nessa região
se situava a taba de Tibiriçá, que parece ter-se designado r
desde muito, como aldeia de Piratininga. Era uma das várias aldeias
distantes quatro ou cinco léguas, em média, 4e Santo André,,
que visitara Leonardo Nunes em 1550, 1551 e quiçá ainda no
ano seguinte.
Guaianases é como denomina a êstes índios Frei Gaspar da
Madre de Deus, nome que já se encontra em Simão de Vasconcelos,
sem que se deva necessàriamente aplicar aos mesmos. João
Staden, Antônio Rodrigues, Anchieta, os chamam tupiniquins, ou
preferentemente o último, simplesmente tupis, tupis do campo.
Contando com a amizade dêsses índios, sôbre os quais se exercia
a influência de João Ramalho, com êles aparentado, através de
sua união com Bartira, filha — e hoje há quem diga irmã — do
Principal Tibiriçá, fundou Martim Afonso, junto ao rio de Piratininga
em 1532, uma segunda Vila, além da de São Vicente. A
solidão e a ausência de interêsse econômico imediato fizeram que
logo se despovoasse, vindo-se todos para o mar — explica Nóbrega
—, atraídos pela navegação que os punha em contacto com o
Reino.
A sombra, porém, do prestígio do fronteiro do Campo e sua
numerosa família, sempre ficaram alguns brancos, os elementos,
certamente mais rudes e audazes. A êstes persuadiu Leonardo
Nunes, em 1550, que se reunissem em tôrno da ermida de Santo,
André. Aí os encontrou, já não todos, que de novo se haviam
dispersado alguns, o Governador Geral. Obrigou-os a juntar-se,.
fortalecer a povoação para a defesa. Deu-lhe a categoria de Vila,
nomeando-lhe para alcaide e juntamente guarda-mór do Campo,
a quem, mais que nenhum outro, para isso fazia jús com o,
prestígio adquirido e as qualidades reveladas, João Ramalho.
Discute-se a respeito da localização primitiva das tabas piratininganas
. Ã margem do Jeribatiba, mais próxima de Santo André
da Borda do Campo e da Serra de Paranapiacaba, estava o
velho Caiubí. No Guaré, junto à confluência do Tamanduatei,
com o Tietê, a de Tibiriçá. Ou nos Campos Elíseos, querem outros.
Ou no Emboaçaba, junto à confluência do Jeribatiba com o
mesmo Tietê. Bem poderia ter ocupado sucessivamente todos êstes
sítios. Outras aldeias se espalhariam às margens do Tietê, do
Pinheiros e seus diversos afluentes. Sôbre êsse ponto, sôbre o
qual tantos e tão acatados pesquisadores da história de São Paulo,,
Teodoro Sampaio entre os primeiros, têm emitido suas opiniões,.
dificilmente, dada a escassez de documentos, poderemos passar
das conjeturas, mais ou menos bem fundadas.
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